Skip links

Dr. TRIGO

Diante de um livro, doutor Trigo tem uma experiência que se opõe a de ser médico. Enquanto a medicina o conecta, invariavelmente, com outras pessoas, a leitura promove certo isolamento, já que para ler ele precisa estar só. Mas, além de ser leitor voraz, inclusive de revistas como a Veja e Superinteressante, ele consome música ativamente no serviço de streaming Spotify e lá tem mais de 300 singles sortidos entre pop, rock, indie, MPB e música clássica. O título que deu à lista de canções, “Trigo’s”, reforça o sobrenome de origem espanhola. Laurentino Trigo, médico obstetra há quatro décadas, é o caçula de três irmãos e tem dupla nacionalidade. Nasceu numa estância hidromineral chamada Mondariz-Balneário, Espanha, e veio ao Brasil com o pai, após ficar órfão de mãe. A sua relação com a maternidade, por outro lado, tem uma dimensão etérea já que doutor Trigo perdura na memória de quem veio ao mundo graças às suas mãos. Bastante reconhecido por seus pares e querido entre os pacientes, doutor Trigo fala, nessa entrevista, sobre o itinerário até chegar em Santo Antônio de Jesus e as experiências que o transpassam em meio à dezena de milhar de partos.

O QUE AS PESSOAS SABEM SOBRE A HISTÓRIA DE DOUTOR TRIGO?
Algumas pessoas sabem da minha história, talvez um percentual baixo delas. Há muitas coisas na minha vida que não dizem respeito ao público, mas se sabe, por exemplo, que eu não sou daqui. Eu nasci na Espanha. Vim morar no Brasil com seis anos de idade, depois do falecimento de minha mãe. Fiquei em Salvador o tempo todo, estudei, me formei pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e vim trabalhar em Santo Antônio de Jesus no ano de 1977. Especificamente, no dia 15 agosto de 1977. Quando eu vim trabalhar aqui, eu morava em Conceição do Almeida. Eu fui para lá em julho de 1977. Naquele tempo, a cidade não tinha muitas condições de fazer um trabalho que eu pensava em fazer.

COMO FOI A VINDA PARA CÁ?

Eu cogitei trabalhar em Cruz das Almas, mas não achei receptiva a minha proposta. Chegando aqui eu procurei o Hospital Luiz Argolo e o prefeito, naquela época, Ursicino Pinto de Queiroz, foi muito efusivo. No outro dia, comecei a trabalhar. Trabalhei no posto de saúde que naquele tempo funcionava na extinta Legião Brasileira de Assistência (LBA), próxima à praça onde funciona a Biblioteca, e onde eu ainda trabalho pela prefeitura. Vim com o emprego do estado, fui trabalhar no hospital e no Sindicato dos Trabalhadores Rurais que, naquele tempo, funcionava na Rua 13 de Maio. Funcionava como posto, mas só atendia os inscritos.

O QUE O SENHOR JÁ CONHECIA DAQUI?

Sabia que era uma cidade maior do que Conceição do Almeida e eu já havia estado aqui quando eu estava na escola. Um colega, que hoje é médico em Feira de Santana, doutor João de Deus, me trouxe para conhecer a cidade com o pai. Ele foi meu colega desde o Central, atual Colégio Estadual da Bahia. Sempre fui aluno de colégio público. Até então eu não havia pensado que viria trabalhar em Santo Antônio de Jesus.

ME FALE SOBRE A GRADUAÇÃO NA FACULDADE DE MEDICINA.
Eu colei grau em janeiro de 1977, mas terminei em 1976. Desde o quarto ano de Medicina eu me voltei à Ginecologia e Obstetrícia. Fiz o internato nessa especialidade, me formei e vim trabalhar no interior. Nessa época eu já tinha uma filha e não podia ficar muito tempo sem trabalhar. Como eu cursei uma universidade federal, em Salvador, atuei no Hospital das Clínicas e nas maternidades Tsyla Balbino, Climério de Oliveira, Manoel Victorino e no Hospital da Sagrada Família.

COMO O SENHOR DEFINIU A SUA ESPECIALIDADE?
Por afinidade. Eu me identifiquei, principalmente, por Obstetrícia. Já pensei em fazer Psiquiatria, Endocrinologia, mas não me identifiquei com ambas.

FOI UMA ESCOLHA PROMISSORA, POR QUÊ?
Sim, você se sente bastante valorizado e gratificado. Trazer alguém ao mundo é uma coisa marcante. A história de vida dela está ligada à história de vida da gente.

AS PESSOAS RECONHECEM ISSO?
Quando tudo ocorre bem, reconhecem a vida toda. Às vezes não me lembro da pessoa, da data que fiz o parto, mas sou lembrado por elas.

E QUE O MOTIVOU A SER ESTUDANTE DE MEDICINA?
Sempre tive a ideia de ser médico, inspirado em um primo carnal, bem mais velho, cardiologista e professor da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha.

O SENHOR TEM ALGUMA PERCEPÇÃO DE QUE O ENSINO DA MEDICINA, NA SUA ESPECIALIDADE, MUDOU DESDE A SUA FORMAÇÃO?
Naquele tempo a gente tinha mais oportunidade de atuar. Inclusive, quando éramos estudantes, dávamos plantão; um atendimento clínico. Ajudávamos o médico, o cirurgião, o obstetra… Existe muito interesse econômico na medicina e há quem faça determinada especialidade porque dá mais dinheiro. Naquele tempo, não havia a visão tão grande do dinheiro; escolhíamos o que gostávamos.

A RELAÇÃO ENTRE MÉDICO E PACIENTE MUDOU?
Sim, porque existe aquela ideia de que se o médico errar o paciente vai processá-lo. O médico já vai com um pé atrás. Quando me formei, lógico que existia erro médico, processo, mas não como hoje. Errar é uma coisa do ser humano, por uma circunstância, não por querer.

O QUE É DETERMINANTE NO ATENDIMENTO PARA QUE ELE SEJA BEM-SUCEDIDO OU NÃO?
O que determina o êxito é você ser honesto, sincero. Se há um risco, deve informar à paciente. Além disso, fazer as coisas porque você gosta e ter em mente que você não sabe de tudo.

POR ONDE O SENHOR ACREDITA QUE PASSA A SOLUÇÃO PARA OS PROBLEMAS QUE NÓS ENFRENTAMOS HOJE NA SUA ESPECIALIDADE? E QUAIS SÃO OS PROBLEMAS, A SEU VER, MAIS DESTACADOS?
É só o governo municipal, estadual ou federal fazer a sua parte. A crise da saúde, mais especificamente na área materno-infantil, é consequência da falta de investimento do governo.

COMO É A SUA LIGAÇÃO COM A CIDADE DE SANTO ANTÔNIO DE JESUS HOJE? EM QUE MEDIDA É DIFERENTE DE QUANDO CHEGOU AQUI?
Hoje, depois de 41 anos, não é a mesma coisa. Aqui nasceram dois dos meus três filhos e quatro dos meus sete netos. Agora minhas raízes aqui são mais profundas.

UM DOS SEUS FILHOS DECIDIU CURSAR MEDICINA POR SUA INFLUÊNCIA?
Ele começou a me ajudar e acabou gostando. Eu dizia: ‘Não faça obstetrícia porque você vai ter que acordar de noite, você vai ficar preso’. O problema da obstetrícia é que para viajar você tem que falar com Deus e o mundo, senão… Já aconteceu de eu ter que voltar, já na estrada fora daqui, para fazer um parto. Isso acontece.

O SENHOR JÁ FEZ ALGUM PARTO FORA DA CIDADE DURANTE A SUA CARREIRA? QUAL O EPISÓDIO MAIS INUSITADO?
Já fiz partos em Salvador, Feira de Santana e Castro Alves. Ter que sair de Salvador, de madrugada, para fazer um parto aqui.

SEU TRABALHO REQUER LIDAR COTIDIANAMENTE COM A COMPLEXIDADE QUE A SAÚDE DAMULHER EXIGE.
Como é mais voltado ao nascimento, ao parto, a gente já se sente familiar, é uma coisa natural. Hoje em dia, é difícil a mulher dizer que não quer ir ao ginecologista do sexo masculino. Existem esses casos, mas a experiência do profissional conta muito.

O CRESCIMENTO DO DEBATE SOBRE GÊNERO NÃO IMPACTOU NA SUA ATUAÇÃO…
Não. Não vejo que isso seja um empecilho para a atuação.

LIDAR COM O NASCIMENTO É BEM ESPECIAL. INTUITIVAMENTE, O SENHOR CONSEGUE SABER SE ESTÃO NASCENDO MAIS PESSOAS DO QUE ANTES? SE NASCEM MAIS MENINOS OU MENINAS?
Acho que tem nascido mais pessoas porque a população aumentou. É uma consequência natural. Por Santo Antônio ser um polo de comércio, muitas pessoas de cidades vizinhas vem ter a criança aqui. Nasce mais mulheres do que homens, mas a diferença não é grande. Eu diria que 55% a 45% ou algo em torno de 52% a 48%, algo assim. A proporção não é muito desequilibrada.

O SENHOR TEM ALGUMA IDEIA DE QUANTOS PARTOS JÁ FEZ?
Eu fiz uma estimativa de que nesses 41 anos, completados em agosto, eu fiz mais de 15 mil partos. Eu fiz um cálculo pelo número de partos que eu faço por mês, hoje de 15 a 20. Quando eu dava plantão, hoje não mais, fazia mais de 30, até 40 partos por mês, porque vinha gente de vários lugares parir aqui.

HOUVE ALGUM NASCIMENTO MARCANTE?
Numa eleição, fiz um parto e tive que doar sangue para a própria paciente. Naquele tempo não havia banco de sangue… Nem tudo é fácil, nem tudo ocorre às mil maravilhas; a criança morre, a gente não tem como resolver e isso cria uma frustração muito grande.

AINDA CRIA?
Sim, porque você pensa sempre no melhor, em bora saiba que possa haver qualquer ocorrência negativa. Quando tem, a gente não aceita; nem a pessoa. Mas tem que se render porque há situações que não há como resolver. A gente fica deprimido, pensa em parar.

MAS É POUCO FREQUENTE…
Bem menos frequente. Mas você faz 99% bom, quando há um mínimo que não dá certo…

O QUE O SENHOR GOSTA DE FAZER QUANDO NÃO ESTÁ TRABALHANDO?
Sou um leitor voraz; leio romance, ficção, livros históricos. Ouço muita música e minha história tem muito a ver com a sétima arte. Sou muito ligado ao cinema.

ME FALE COMO O CINEMA AFETA A SUA EXPERIÊNCIA, SEJA COMO MÉDICO OU COMO SUJEITO COMUM
Como sujeito comum. A emoção de um grande filme é a mesma do médico e a de um sujeito comum.

Por:  Edvan Lessa | Jornalista

 

Leave a comment