Skip links

Ecos de Marepe

O sujeito do Recôncavo é, antes de tudo, um otimista. Marepe se expressa assim quando fala de arte. Reconhecido por suas fabulações com objetos do cotidiano de sua terra, o santo-antoniense completou trinta anos de carreira, embutindo o Recôncavo, a Bahia e o Nordeste em sua obra, deslocando-os para o mundo, assim como a si próprio, através de dezenas de peças estranhamente comuns. Na Pinacoteca, em São Paulo, “Estranhamente Comum” foi o nome da exposição que reuniu, entre 27 de julho e 28 de outubro de 2019, um número de trabalhos equivalente à trajetória do artista, resultado de memórias persistentes. Apesar de evocar acústicas improváveis, Marepe vive numa caminhada silenciosa com a arte, como ele mesmo afirma. Em seu ateliê, um imóvel de cor amarelo-gema localizado na Rua Rui Barbosa, ele recebe forasteiros em um ambiente calmo e incomodamente ordenado. Fiel a materiais como madeira, telhas, baldes, cabaças e bacias, esse corajoso artista, que já deslocou um muro para São Paulo, compartilha, nesta entrevista, alguns ecos de sua poética tridimensional.

 Como desenvolveu o seu olhar para a arte?

Eu olhava para os livros e não conseguia ver o meu trabalho ali. O meu trabalho foi muito de garimpo, muito seletivo nas informações que eu queria para mim. Eu queria primeiro entender o que era arte. O primeiro contato que eu tive foi com os artistas impressionistas, que, de alguma forma, retratavam o cotidiano: bares, cabarés, cenas domésticas.

Você não tem receio de se colocar no que apresenta? Seria um modo de aprisionar um sentido, estando na obra?

É um trabalho quase autobiográfico. Eu tive uma relação com o teatro no início, e tem uma linguagem chamada performance. Eu me senti bem em me expor como participante do trabalho e me retratar.

Essa mensagem chegou aonde você queria?

Acho que sim. O resultado é essa exposição na Pinacoteca. Não imaginava que isso iria acontecer. Estou chegando aos 30 anos de carreira e foi um presente para mim. É o resultado desse feedback. O que eu vivi, de alguma forma, refletiu para que essa exposição acontecesse.

E o convite, como ele aconteceu na prática? Como é estar lá?

Já havia dois trabalhos na Pinacoteca: “Desemboladeira” (2004) e “Retrato de Bubu” (2005). O convite foi de um dos diretores, através da Galeria Luisa Strina, que me avisou e pediu que eu ligasse confirmando. Foi mais ou menos um ano de trabalho bem duro. Vários trabalhos estavam fora do país, já haviam sido adquiridos, então pedimos permissão para reproduzi-los aqui no Brasil. “Os filtros” (1999) e “Periquitos” (2005), por exemplo, estão na Alemanha; “Chorinho” (2009) está nos Estados Unidos.

Já houve frustração diante da recepção de algum trabalho?

Nunca me frustrei. É tudo tão pensado, tão calculado. Penso em tudo; desde o dinheiro que vou gastar até onde vou encontrar as coisas. Vem aquele turbilhão de ideias certinho, muito redondo. Quando vejo, o trabalho está pronto. O tempo de me refazer não está definido. Eu produzo a obra e, por um tempo, me distancio até vir outra coisa.

E sobre a sua relação com a cidade?

É algo que vai gradativamente acontecendo, com naturalidade. Nunca forcei as pessoas a entenderem o meu trabalho; nunca impus nada. Às vezes, eu fiz algo porque tinha que fazer, como o muro da São Luís e outras coisas para as quais fui convidado, como restaurar os anjos do cruzeiro de São Benedito. Também há o trabalho que fiz para Júnior, o medalhão que fica de frente para o estádio. A minha relação com a cidade é muito tranquila. Acho que as pessoas me tratam muito bem. Recentemente, fui convidado para fazer a curadoria de uma pintura ao lado do Centro Cultural. Vai ser um painel com vários artistas. A ideia é que seja nos dias 29, 30 de novembro e 1º de dezembro. O tema será “Renascer”.

Meu trabalho todo é um pouco isso. Gosto de trabalhar com materiais mais simples, próximos delas. Na minha cabeça, isso faz as pessoas pensarem que dá pra fazer arte com pouco dinheiro, com poucos recursos. Arte não precisa ser algo tão afastado da nossa realidade e cotidiano.

Ao dispensar a tinta e recorrer a outros objetos tão comuns, você não desafia ainda mais as pessoas a tentar captar o universo da sua obra?

Acho que sim. É um desafio para mim também. É sempre um desafio um trabalho novo, não é algo que já está dado. É como se fosse uma agulha no palheiro encontrar um trabalho que se encaixe no espaço disponível.

Qual foi o maior hiato de produção?

Eu estou sempre anotando e criando.

Lembrar de algo é o suficiente para criar um trabalho artístico?

Gosto das coisas que não esqueço. Quando esqueço, acredito que é uma forma de deletar. Mas quando lembro, digo: vou fazer.

Onde está o Recôncavo em “Embutido Recôncavo” (2003)?

Vejo o Recôncavo no movimento dele, quase circular. Ele abre para dentro e para fora. Tem essa coisa do côncavo, a linha de dentro do círculo, e do convexo, a linha de fora. Fico imaginando esse movimento de ir e voltar. Eu fiz esse trabalho ligado à globalização. Moro no interior, e tenho essa relação fora do país, então é essa coisa de ir e voltar. Do que está dentro ser o que está fora, e do que está fora ser o que está dentro.

Você não consegue voltar inteiro e nem sair inteiro?

Acho que dá para ir e voltar inteiro.

Como vê a relação entre as suas obras e a arquitetura contemporânea?

Eu não sou arquiteto, mas acho que meu trabalho tem muito de arquitetura. Quando penso na “Cabeça Acústica” (1996), e que duas bacias vão se fechar e criar uma acústica diferente para a cabeça, acho que isso é arquitetura. “O Telhado” (1998), “Sangue de Novela” (2004), por exemplo, têm uma relação com a casa. Em relação à decoração, acho que a arte é fundamental. Na minha casa, apesar de não ser moderna, utilizo obras de arte. Conviver com arte é algo extremamente legal e dinâmico.

 

Por: Edvan Lessa – Jornalista