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O MELHOR DE BUENOS AIRES SELECIONADO POR PORTEÑOS DA GEMA

Entre ruas arborizadas, parques bucólicos e bairros novidadeiros, a cidade tem achados, enclaves criativos e segredos – indicados aqui por genuínos porteños

Buenos Aires reabriu ao turismo no último dia 31 de outubro. Por ora, apenas a capital pode ser vistada pelo fato de a pandemia não estar controlada no interior do pais. Mendoza, Ushuaia, El Calafate, El Chaltén e Salta terão que aguardar mais um pouco. Apenas o aeroporto de Ezeiza esá aberto para pousos e decolagens e as fronteiras terrestres ainda estão fechadas. O governo argentino definiu como requisito um teste RT-PCR negativo realizado até 72 antes do embarque. O visitante também deverá apresentar um seguro saúde que cubra o tratamento em caso de coronavírus e também preencher um declaração eletrônica em que se compromete a seguir as diretrizes do país no combate à pandemia. Veja abaixo um roteiro pela capital:

Michaela Trimble é uma jornalista que escreve sobre viagens. Do Alaska ao Japão, de Paris ao Rio de Janeiro, o mundo é praticamente o quintal dessa nova-iorquina. Mas foi Buenos Aires, onde ela já havia estado em várias ocasiões, que ela elegeu para uma temporada de três meses. Enquanto bebemos uma limonada em um bar com mesas na calçada em frente à Plaza Castelli, em Belgrano, pergunto o que a faz gostar daqui.

— A criatividade. Aqui tem sempre alguma coisa acontecendo. A cidade me inspira, por isso venho.

Não foi um comentário bajulador, mas uma percepção comum para os que, como eu, vivem na cidade de Evita e Gardel, Borges e Maradona. E também do papa e das mulheres que criaram o movimento Ni Una Menos para denunciar o feminicídio e a violência de gênero. Buenos Aires sempre teve gente disposta a arriscar, mesmo na grande crise de 2001, quando muitos perderam as economias de uma vida inteira. Ainda assim, a cidade viu surgir uma cena criativa e artística.

Enquanto Michaela fala, me vem à mente o resultado desses tempos minguados, mas fecundos: o FoLa, museu de fotografia; os concertos gratuitos de jazz ao meio-dia no Centro Cultural Kirchner; o centro cultural Usina del Arte, em la Boca; a livraria Falena, em Colegiales, que montou no lindo casarão não apenas um café, mas uma adega de vinhos em seu subsolo, onde é possível pedir um malbec enquanto folheia os livros.

Nunca é demais lembrar que Buenos Aires tem a maior concentração de livrarias por habitante no mundo – ah, a El Ateneo Grand Splendid!

Sem contar as galerias de arte, as cafeterias que servem blends da Guatemala, do Equador, da Indonésia e da Etiópia; na vibrante cena gastronômica, que se renova constantemente, cosmopolita como a cidade. Cozinha peruana, coreana, italiana, russa, judaica, árabe. Parrillas? São centenas. Vegetarianos? Sí, los hay.

Hebe e Evita

Michaela não é a única que vem passar uma temporada. Há estudantes, jornalistas, investidores. A cidade já foi comparada a Paris.

Daqueles anos, início do século passado e fim do anterior, ficou o esplendor dos belos palacetes e mansões da Avenida Alvear, como o antigo Palacio Pereda, hoje residência do embaixador do Brasil, e do vizinho Palacio Ortiz Basualdo, sede da Embaixada da França. 

Há também o magnífico edifício do Centro Naval, a um pulo das Galerias Pacífico. A monumentalidade da Avenida de Mayo não fica atrás: dois incontornáveis são a Casa de la Cultura, em frente à Plaza de Mayo, e também o eclético e imperdível Palacio Barolo, já quase na Plaza del Congreso, que guarda no topo um farol giratório que emite sinais para seu “irmão” uruguaio, o Palacio Salvo, de Montevidéu.

Dos anos de esplendor e belle époque, o Palais de Glace, na Recoleta, já foi rinque de patinação no gelo e salão de baile – em uma noite que entrou para a história, Gardel levou um tiro enquanto tentava defender um amigo.

E, já que falei em Recoleta, o passear ali reserva algumas das maiores árvores de fícus da cidade e senhoras com penteados à la Hebe Camargo, que deixam rastros de perfume de duty free.

E como não citar o famoso cemitério fundado pelos padres recoletos. Retornei ali dias atrás e lembrei da história que envolve o mausoléu mais visitado, o da família Duarte, onde os restos de Evita descansam.

Quando morreu, em 1952, seu cadáver mumificado foi roubado e levado clandestinamente à Itália, onde permaneceu escondido em um cemitério em Milão por 14 anos. Para trasladá-lo de volta, fizeram-na passar por uma imigrante, Maria Maggi de Magistris. Foi só em 1971, quando estava exilado em Madri, que Perón recuperou o corpo de Evita e, cinco anos depois, finalmente ela chegou à Recoleta.

Flowers everywhere

Uma das coisas de que eu mais gosto em Buenos Aires são os parques. O corredor verde formado ao longo da Avenida Libertador reserva muitos lugares para descansar, caminhar, correr e andar de bicicleta.

E ainda estão perto de edifícios de referência, como a Biblioteca Nacional, desenhada por Clorindo Testa, o Automóvil Club Argentino, exemplo da arquitetura racionalista, e o Malba, um dos grandes museus da cidade.

O percurso tem seu ápice nos Bosques de Palermo, com seu Jardim Japonês (deslumbrante em setembro, quando florescem as azaleias), o Planetário, o Rosedal, com seu pátio andaluz e suas milhares de rosas.

O paisagista de Buenos Aires foi Jules Charles Thays, um francês que depois se naturalizou Carlos e tinha como meta nunca deixar ruas sem árvores nem árvores sem flores. À frente do cargo de diretor de Parques y Paseos da cidade, que assumiu em 1891, Thays mandou plantar mais 150 mil árvores, fazendo a cidade transbordar de verde e praças notáveis.

As largas avenidas e os parques possuem espécies que desabrocham uma atrás da outra. Em novembro, os jacarandás pintam a Avenida Corrientes de lilás; em dezembro, explodem as delicadas flores amarelo-ouro das tipuanas na Avenida del Libertador; em seguida vêm as paineiras da 9 de Julio, os ipês cor-de-rosa do Parque Centenário e os ceibos vermelhos na Costanera Sur.

Em Las Barrancas, praça no bairro de Belgrano, longe do circuito turístico, há palmeiras, pinheiros, umbus e uma curiosidade que não é do mundo vegetal: em uma extremidade da praça há uma réplica da Estátua da Liberdade de 1886 – mesmo ano em que foi descerrada a de Nova York.

Até pouco tempo atrás, a versão portenha tinha uma pichação escrita em spray preto: “La libertad no es esta estatua”. No outro extremo da praça, embaixo de um belo coreto (diga “glorieta”), portenhos da gema se reúnem diariamente, às 20 horas, para uma milonga. Nada mais autêntico. É só chegar, achar seu par e bailar. Quem não souber, sugiro que apareça às segundas e às quartas, às 19 horas, e no fim de semana, às 17h30, e faça uma aula.

Mais além de Palermo

Sempre que caminho por Palermo vejo turistas e mais turistas. Creem eles que a cidade acaba caso ultrapassem os limites do bairro? Como os navegadores de outrora que temiam despencar no oceano infinito e mortal caso avançassem a linha do horizonte? Pois existe vida muito interessante além de Palermo, restaurantes, galerias de arte, história e personalidade.

Por ser uma cidade caminhável, plana e com uma escala humana, a partir de Palermo, por exemplo, se pode chegar a Villa Crespo (a dos outlets das ruas Aguirre e Loyola), Chacarita (as imobiliárias batizaram-na de Palermo Morto pela proximidade com o cemitério) ou também Colegiales, todos bairros onde a palavra de ordem do momento é gentrificação.

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O fenômeno é conhecido: primeiro, surgem os grafites e murais, as baladas descoladinhas, os espaços dedicados às artes, os cafés gourmet. Em seguida, aportam as agências de publicidade e as produtoras de filme. Os aluguéis então disparam, e os moradores de toda uma vida vão em busca de outros bairros.

Mas a graça desses bairros é que ainda preservam sua essência: sua gente, a fábrica de massas dos imigrantes, a loja de ferragens da esquina que passou de pai para filho (o personagem de Ricardo Darín no filme O Conto Chinês era dono de uma delas). São bairros com alma, sem maquiagem, com muito a se descobrir.

Se na Recoleta repousam os restos de Evita, no Cemitério da Chacarita a peregrinação se dá por causa de Gardel. A frequência é majoritariamente de portenhos que vão ali prestar sua devoção ao tangueiro como se ele fosse um santo. Além das placas de bronze afixadas ao mausoléu em sua homenagem, há uma estátua de Gardel onde muitos deixam um cigarro aceso entre os dedos.

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Mas acredito que, para os brasileiros, o curioso é ver alguns dizeres escritos em lunfardo, gírias inventadas no submundo da cidade, na segunda metade do século 19, incorporadas ao falar das ruas e, em seguida, às letras do tango.

Uma das modalidades do lunfardo está na inversão da ordem das sílabas, assim: marido (“dorima”), mujer (“jermu”). Quando visitar o túmulo de Gardel, você não terá dificuldade nenhuma para entender a placa: “Al troesma del gotán, ¡gracias!”

Em Buenos Aires, tudo está mais ou menos próximo. Em meia hora de metrô – caso não esteja em greve –, chega-se ao cheiroso, limpo e arrumado Puerto Madero. Lugar do dinheiro novo e onde está o metro quadrado mais caro da cidade. O bairro do sushi e do champanhe. Quando ando por ali, me sinto em outro país. É bom para um passeio. Mas, no quesito poesia, Puerto Madero fica devendo. Menos mau que San Telmo, o berço do tango e da nostalgia, está do outro lado da Avenida Paseo Colón. A um pulo dali.

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